Com seis meses de atraso, os autores de um dos estudos mais polêmicos de 2010 enfim deram uma resposta formal às duras críticas que receberam da comunidade científica. A pesquisa em questão foi publicada no começo de dezembro na revista Science e descrevia bactérias que teriam arsênio em vez de fósforo em seu DNA. Esses microrganismos foram gaiatamente apelidados de ‘bactérias extraterrestres’, por conta do alarde com que o estudo foi divulgado na internet.
O trabalho recebeu uma enxurrada de comentários em blogs e redes sociais, condenando tanto a metodologia do estudo quanto a forma sensacionalista como ele foi anunciado pela Nasa (agência espacial norte-americana). As alfinetadas só foram rebatidas no fim da semana passada, quando a Science publicou um um dossiê com oito artigos críticos escritos por outros cientistas e a resposta dos autores sistematizadas em um novo artigo.
A novela é interessante porque ilustra bem um processo de mudança profunda pelo qual a ciência está passando com a popularização da internet e das redes sociais. Mas retomemos a história desde o início para entender melhor por que estamos assistindo de camarote a uma transformação no mundo da publicação científica.
No fim de novembro, poucos dias antes da publicação do artigo da Science, a Nasa convocou a imprensa para uma coletiva na qual apresentaria “uma descoberta da astrobiologia que terá impacto na busca por indícios de vida extraterrestre”. A mensagem se alastrou e se deturpou como num grande telefone sem fio. Não tardou até que começassem a circular pela rede mensagens de internautas excitados à espera do anúncio da descoberta de vida alienígena, provavelmente numa das luas de Saturno.
Na verdade, o que os cientistas haviam descoberto – ou alegavam ter descoberto – eram bactérias que viviam no lago Mono, na Califórnia, e que seriam capazes de substituir os átomos de fósforo por outros de arsênio na molécula de seu DNA. Se essa alegação fosse verdadeira, essa seria a primeira forma viva conhecida capaz de prescindir de um dos elementos químicos fundamentais para a vida tal qual a conhecemos. Isso significaria que, caso houvesse seres vivos em algum outro planeta, talvez seu metabolismo não obedecesse à química da vida na Terra.
Sem provas convincentes
Nem todos os cientistas, no entanto, compraram a versão dos autores do estudo, liderados por Felisa Wolfe-Simon, da Nasa. Numerosas críticas aos métodos e à interpretação dos resultados do estudo foram feitas na internet. Uma das mais citadas – e também das mais contundentes – foi publicada no blog da microbiologista Rosie Redfield, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. Ela destrinchou o artigo da Science e concluiu que não havia ali qualquer indício convincente de incorporação de arsênio ao DNA das bactérias. Como justificar então o salto interpretativo operado pelos autores do estudo? Pode ter sido por falta de escrúpulos ou pura incompetência, especulou Redfield, sem se posicionar.
Críticas como essa reverberaram em vários outros fóruns, inclusive na blogosfera brasileira – o post de Carlos Hotta é um exemplo dentre muitos outros. Os autores do estudo foram acusados de não tratar com rigor as amostras de DNA da bactéria e de não fazer todos os testes necessários para confirmar a hipótese ousada que sustentavam.
Os autores do estudo se recusaram a discutir as críticas em público, alegando que a blogosfera e a mídia não eram espaços adequados para o debate de ideias científicas. Na mensagem em que se recusou a comentar as críticas a pedido do jornalista de ciência Carl Zimmer, da Slate, Wolfe-Simon respondeu: “Qualquer discussão tem que ser submetida à revisão por pares como o nosso artigo foi, e deve passar por um processo de validação para que todo o debate seja moderado de forma adequada.”
Duas semanas depois, como as críticas continuassem a proliferar, cada vez mais venenosas (estariam incorporando arsênio?), os autores acharam por bem divulgar, no site de Wolfe-Simon, um comunicado em que prestavam novos esclarecimentos ao público – embora preferissem discutir essas questões através do processo de revisão por pares, fizeram questão de frisar. As explicações não satisfizeram Rosie Redfield, que as rebateu ponto a ponto em seu blog no mesmo dia.
A “revisão por pares” a que se referem os autores é o mecanismo usado pelas revistas científicas para garantir a qualidade dos trabalhos publicados. Um artigo enviado para publicação é encaminhado para dois ou mais especialistas naquela área, que fazem uma avaliação crítica anônima e recomendam a publicação ou apontam reformulações necessárias para que o trabalho seja aceito. O caminho do envio à publicação do artigo pode levar vários meses.
Revisão por pares pós-publicação
Com a proliferação de blogs e redes sociais, no entanto, esse processo começa a soar datado. A avaliação pelos pares é lenta, enviesada e trabalhosa, segundo uma análise publicada no ano passado pela revista The Scientist. Deslocar esse trabalho para blogs especializados e outros fóruns que reúnem cientistas na internet seria uma forma de tornar esse processo mais ágil, aberto e transparente. Abrir esse processo é uma forma de fazer aquilo que muitos chamam de “revisão por pares pós-publicação”, em que a avaliação dos artigos é feita a posteriori por uma comunidade de pesquisadores on-line.
O que se viu no exemplo das bactérias de arsênio foi um caso informal desse tipo de revisão – um dos primeiros em que especialistas qualificados avaliaram abertamente um artigo de ponta e influenciaram a forma como ele foi percebido pelo público, como apontou Carl Zimmer em análise publicada na Slate. A recusa dos pesquisadores de participar do debate nesse fórum ainda pouco usual para esse tipo de discussão denota uma incompreensão dos novos tempos.
E o que dizer da discussão do trabalho que aconteceu pelo caminho convencional, o único visto como autorizado pela equipe de Wolfe-Simon? Os críticos aceitaram seguir as regras do jogo ainda válidas. A própria Rosie Redfield assinou um dos oito comentários do dossiê publicado pela Science. Uma inevitável sensação de déjà vu se abaterá sobre quem acompanhou a polêmica desde o início. As críticas são aquelas que já haviam sido expostas meses antes: não há provas conclusivas de que as bactérias do lago Mono tenham incorporado arsênio ao seu DNA. Na refutação às críticas, os autores do artigo mantêm sua interpretação original dos resultados.
As reações iniciais à resposta permanecem céticas. Redfield admite que detalhes menores foram esclarecidos, mas ainda não está satisfeita. Ela lembra que os autores não conduziram novos experimentos, inclusive um teste que poderia provar de uma vez por todas que o arsênio foi incorporado ao DNA das bactérias. Em seu site, Wolfe-Simon afirmou que cederá amostras das bactérias para que outras equipes de cientistas possam testar sua hipótese. A história promete ainda render um bocado.
Mais interessante que o debate técnico, porém, é assistir em tempo real a uma página que vai sendo virada na forma como a ciência é feita e divulgada.

Fonte: Estadão Revista Piauí (1 junho 2011)